segunda-feira, 31 de março de 2014

Causo minuto: O velório de Zequinha Mafuá



Assim que se espalhou a notícia da morte de Zequinha Mafuá quatro mulheres desmaiaram de agonia, aflição e dor. Em quatro lugares diferentes, a comoção e as lágrimas deram o tom daquela melancólica manhã chuvosa. Tristeza e lamento, sussurros e saudade, aquele defunto seria velado de maneira diferente. Tinha sido um homem diferente.
 Uivos não tão lascivos como os vizinhos estavam acostumados a ouvir foram sentidos. Velas acesas, multidão em polvorosa para tentar acalmar o coração das mulheres que se tornaram viúvas inesperadamente. Aquilo não poderia ser verdade. Não com elas, não era justo, não era possível, não era obra do Senhor. Logo ele homem tão forte, saudável, encantador, elegante, feio era verdade (muito feio para ser mais verdade ainda), um homem único e peculiar que entendia e decifrava as mulheres.
As quatro mulheres não se conheciam, porém tinham algo em comum, todas eram companheiras de Zequinha Mafuá. Com Florisbela, Zequinha casou-se em uma sessão espírita, já que a moça era kardecista por opção e crença. Ele se apresentou como espírita nato, sabia de cor a Bíblia segundo o kardecismo, tinha todos os livros de Zíbia Gaspareto e convenceu a moça que aquilo era amor de outras vidas, tantas as coincidências que o “destino” lhes proporcionara. Tinha sido amor à primeira poesia no espírito de Lucius, já que com a feiura estampada no terrível visual do galã era impossível ser amor à primeira vista. O cara era brejeiro, amante dos bons poemas e das boas canções, entendia de flores, combinava as cores de acordo com cada estação do ano,  astrólogo, falava a língua dos anjos, psicografava com letras tão arredondadas que parecia ter sido escrito pelos deuses da grafia santa. Inteligente e sagaz recitava de Shakespeare a Clarice Lispector. Florisbela não resistiu a alma gêmea e derreteu-se em amor e paixão nos braços de seu amor de tantas vidas.
Com Gabriela Zequinha casou-se na umbanda. Dizia ser filho de Xangô, com Oxum como seu guia de costas, mostrou-se entendido nos orixás e tinha a obra de Jorge Amado na mente. Foi tiro e queda para a filha de Oxossi. A baiana cor do pecado cobiçada por todos na redondeza, doou seu coração (e outras coisas mais) ao mais improvável dos homens na beleza, mas ao mais astuto no conhecimento do desejo das mulheres. Com Mafalda, católica fervorosa, Zequinha recitava a bíblia como um mestre cuca em uma receita de bolo, conhecia do Antigo ao Mais Novo Testamento. Cantava as músicas do padre Marcelo, sabia os milagres do Padre Pio, tinha um santuário em casa e não perdia a reverência a um santo da amada e idolatrada salve salve Igreja Católica Apostólica Romana, tinha a foto de todos os papas na carteira. Frequentava a igreja todos os domingos e rezava com tanta fé e temor reverencial a Deus, que Mafalda acreditou ter sido enviado pelo Senhor para presentear sua santa devoção. Casaram-se na própria missa realizada pelo padre Antônio em dia de Santo Antônio.
Com Florisvalda, a evangélica fundamentalista, Zequinha foi mais além, conseguiu transformar-se em pastor para conquistar o coração da adepta da Igreja “Deus é Luxo e Amor”. E não tinha pastor até então que sabia fazer uma pregação como a de Zequinha Mafuá. Todos se encantavam com seu poder de dar glória ao Senhor a arrecadar dinheiro dos fiéis. Chegou a ameaçar o bispo Macedo em arrecadação em uma única pregação.
Na verdade, para os amigos mais próximos Zequinha se dizia agnóstico. Tocava violão como ninguém e sua voz era aveludada a ponto de colocar Milton Nascimento como calouro em programa dominical. Gostava de um bom papo, era boêmio, mas sabia a hora de voltar ao aconchego de seus quatro lares. Revezava durante a semana onde dormir, sempre dizendo às suas amadas da impossibilidade de estar a semana toda em casa por conta de seus afazeres laborais, que eram tantos. Não tinha profissão certa. Dizia que vivia dos dons divinos. Sabia fazer de tudo. Conseguia sustentar as quatro casas com alguma dificuldade, mas não faltava na sessão mais importante para as apaixonadas mulheres. Era na cama que o “cabra” fazia seus milagres. Ali, expiava os pecados carnais, batia tambor, chamava a pomba-gira, encarnava o espírito de amantes do antepassado, psicografava ao toque do espírito de Lucius,  fazia as mulheres voarem e se sentirem nas nuvens. Era momento único de paixão, sexo, amor, carinho, gozo, afeto e romance, muito romance. Nunca uma noite tórrida de amor era feita sem flores, poesia, canções e uma boa massagem erótica. Os uivos lascivos eram ouvidos pela vizinhança. O segredo de Zequinha Mafuá era escondido a sete chaves por suas quatro mulheres.
Mas tudo havia se perdido naquela manhã. A notícia da morte de Zequinha Mafuá tinha sido uma hecatombe. A perda do companheiro, do marido fiel, do amor de tantas vidas, do orixá perfeito, do pastor amado, do católico temente a Deus, do homem cujo único defeito era ter a cara do Shrek misturada às orelhas de... (deixa pra lá, pensem em um cara de orelhas grandes, pronto!), a boca da Erundina, e o nariz do Galvão Bueno.
O velório foi a representação do sincretismo nacional. Zequinha Mafuá conseguiu demonstrar que realmente o Brasil é um estado laico. De pastor evangélico, a orixá encarnado, padre, bispo, e espíritas kardecistas, aquela alma agnóstica foi mais recomendada que moça virgem na noite de núpcias (quem não conseguir entender esta parte é só perguntar para as vovós ainda vivas).
As quatro mulheres que não perderam a compostura entreolharam-se e conseguiram entender o momento de dor e aflição que cada uma enfrentava e, sem qualquer constrangimento, uivaram em um só tom, uníssono e harmônico. Depois seguraram cada uma em uma alça do caixão e enterraram aquele que foi único e múltiplo, amante e amado, agnóstico e evangélico, católico e espírita, adepto da umbanda e amante das boas e dadivosas almas em busca da compreensão erótica e do lascivo romance da carne. Zequinha Mafuá foi enterrado com todas as honras religiosas que um agnóstico convicto já pode ter.

Nenhum comentário:

Postar um comentário