quarta-feira, 6 de maio de 2015

Grupo faz rotas noturnas a fim de tirar 'invisibilidade' de moradores de rua.

Com doação e papo, Entrega por SP quer 'distribuir sorrisos' pela cidade.
Integrante do grupo Entrega por SP conversa com moradores de rua ao fundo enquanto amigos buscam materiais para doação dentro do carro. Uma vez por mês, dezenas de jovens se organizam para percorrer a cidade na madrugada entregando doações e conversando (Foto: Fábio Tito/G1)


Integrante do grupo Entrega por SP conversa com moradores de rua ao fundo enquanto amigos buscam materiais para doação dentro do carro. Uma vez por mês, dezenas de pessoas se organizam para percorrer a cidade na madrugada entregando doações e conversando (Foto: Fábio Tito/G1)
CONHEÇA O ENTREGA POR SP
- Grupo usa rede social para juntar doações e mão de obra;
- Lucas Caldeira teve ideia em noite de frio sob 2 cobertores em 2013;
- Conversar e conhecer beneficiados é preocupação nas saídas mensais.
Em um ponto entre Pacaembu e Higienópolis, bairros nobres da Zona Oeste de São Paulo, um rosto já bem conhecido por quem passa por ali mantém dia e noite um olho nos carros parados na rua. Alzira Francisca de Jesus, de 59 anos, guarda há 11 anos os veículos parados em frente ao local onde ela mora desde então - os arredores de um prédio que se encontra desocupado, mas que até poucos anos atrás era uma unidade das Lojas Americanas.
Alzira Francisca de Jesus posa para fotos na esperança de rever familiares com quem perdeu o contato há décadas. 'Pode escrever aí, o nome da minha mãe é Ana Rosa Maria de Jesus e o do meu pai, João Francisco de Jesus. Eles são de Cândido Sales, na Bahia' (Foto: Fábio Tito/G1)Alzira Francisca de Jesus posa para foto na
esperança de reencontrar familiares de Cândido
Sales, na Bahia, que não vê há décadas
(Foto: Fábio Tito/G1)
Em cerca de 20 minutos de conversa com um desconhecido, dona Alzira conta da amizade com alunos da faculdade vizinha, das pessoas que vivem ali com ela, da família que não vê há décadas no interior da Bahia, dá conselhos lembrando de quando chegou a São Paulo aos 17 anos... De desconhecida que não queria aparecer na foto, logo se solta e passa a distribuir abraços e dar risadas, transforma-se em modelo posando na rua para a câmera, esperando que alguém da família no Nordeste a reconheça e procure.
"Desde que vocês começaram já deu pra ver que ajudou muito, não só nós aqui. Vai fazer dois anos, não vai? Tá vendo como eu lembro?", diz com o sorriso que não sai do rosto. Ela se refere ao grupo que passou a aparecer por ali uma vez por mês com doações e com o interesse em conversar e conhecer melhor pessoas como ela, que moram nas ruas de São Paulo.
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Às 21h da última terça-feira do mês, dezenas de pessoas se reúnem na Praça Charles Miller, no Pacaembu, e organizam uma 'linha de produção' para separar doações de cobertores, roupas, alimentos e material de higiene bucal antes de sair por São Paulo (Foto: Fábio Tito/G1)Voluntários separam doações de cobertores, roupas, alimentos e material de higiene bucal antes de sair distribuindo tudo a moradores de rua em São Paulo (Foto: Fábio Tito/G1)
'Linha de produção'
21h de terça-feira na Praça Charles Miller, como é conhecida a área que engloba o amplo estacionamento em frente ao Estádio do Pacaembu. À parte de alguns donos de Mini exibindo seus carros e de um homem que testa um drone em sobrevoos, um grupo bastante organizado causa ali mais movimento que o normal para um dia sem jogo no estádio. Apesar do uniforme de alguns, não são torcedores.
As primeiras ações foram se moldando a ponto de ser essa a essência do projeto, de compartilhar sorrisos na cidade. De como somos todos iguais, deixando de considerar os moradores de rua invisíveis para a sociedade, para nós, para todos"
Lucas Caldeira, idealizador do Entrega por SP
As 69 pessoas se organizam em uma linha de produção. Parte delas seleciona e divide roupas e calçados masculinos, femininos e infantis em várias pilhas, ao lado de um monte com 80 cobertores - a maioria novos, ensacados. Outra parte monta kits em sacolas que vão sendo passadas de mão em mão, cada um acrescentando uma coisa: sanduíche, pacote de biscoito, garrafinha d'água, sabonete, pasta e escova de dentes, par de meias e pacote de camisinhas.
O total de 400 kits é dividido em quatro grupos. As diversas sacolas de roupa também são organizadas para que cada grupo saia com números semelhantes de peças. Enquanto isso, algumas pessoas com pranchetas planejam as rotas da noite e a divisão de pessoas por grupo e por carros. Essa organização toda leva pouco mais de 2 horas.
É só então que o pessoal forma uma roda para que seja dito o que foi decidido para aquela noite. Quem fala são alguns dos que compõem a chamada "linha de frente" do grupo Entrega por SP, indicando a divisão das pessoas nos mais ou menos 25 carros disponíveis naquela terça-feira, e também dando recomendações de como agir e relatos de entregas anteriores.
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Roda com os quase 70 voluntários participantes da noite ouve instruções, recomendações e relatos da 'linha de frente' do Entrega por SP (Foto: Fábio Tito/G1)Roda com os quase 70 voluntários participantes da noite ouve instruções, recomendações e relatos da 'linha de frente' do projeto antes da divisão em grupos para a ação (Foto: Fábio Tito/G1)
'Hoje eu só durmo assim'
Ao ver a roda se formando e ser chamado para participar, Edson* se aproxima. "É oração, não é não? É, sim. Só pode ser", diz, convicto. Não era. O grupo não tem qualquer ligação com religião ou partido político - e reforça isso sempre que possível.
Morador de rua, Edson participa de roda de voluntários antes da divisão em grupos para o cumprimento das rotas. Ele achou que seria um momento de oração, e se surpreendeu ao saber que o grupo não tem vínculo religioso (Foto: Fábio Tito/G1)Morador de rua, Edson* participa de roda de
voluntários antes da divisão em grupos para o
cumprimento das rotas (Foto: Fábio Tito/G1)
Com tênis, calça jeans, camiseta, casaco e boné que acabara de escolher dentre as doações, Edson conta que deu sorte de estar passando por ali quando viu o grupo, ao vir caminhando de Santo Amaro, bairro na Zona Sul a 15 km de distância. "Agora eu duvido que o pessoal vai atravessar a rua quando eu estiver passando. Aconteceu agora há pouco ali em cima, a moça me viu vindo e foi pra outra calçada", afirma.
Interessado em conversar, ele aos poucos conta do problema com drogas, de como saiu de casa, dos conselhos que ouviu dos pais, dos bicos, do canto que escolheu para dormir aquela noite. "Não consigo mais dormir com as mãos soltas. Já tentaram me atacar mais de uma vez, naquela época em que estavam matando os moradores de rua. Era para eu ter sido um deles. Hoje eu só durmo assim", e tira do bolso do casaco o canivete, segurando firme. Fala que prefere não aparecer em foto nem dar o nome verdadeiro para a reportagem, mas no fim passa ao repórter seu contato no Facebook.
Lucas Caldeira Brant, idealizador do projeto Entrega por SP, fala em meio à roda formada por voluntários antes da saída em grupos cumprindo rotas pela cidade (Foto: Fábio Tito/G1)Lucas Caldeira Brant, idealizador do projeto Entrega por SP, fala em meio à roda formada por voluntários antes da saída em grupos cumprindo rotas pela cidade (Foto: Fábio Tito/G1)
Todos iguais
"A gente não gosta de exposição, de drama, sabe? Trilha sonora triste, emotiva. Não gostamos de ser tratados como heróis. Nossa linha é mais humana, de que somos todos iguais, e sem vitimismo", afirma o radialista Lucas Caldeira Brant, de 32 anos, idealizador do Entrega por SP.
Agora eu duvido que o pessoal vai atravessar a rua quando eu estiver passando. Aconteceu agora há pouco ali em cima, a moça me viu vindo e foi pra outra calçada"
Edson*, morador de rua, após
receber roupas doadas
Em uma noite de julho de 2013, quando o frio intenso chegou a causar a morte de moradores de rua na cidade, Lucas teve que buscar um cobertor extra porque não conseguia dormir. No dia seguinte, conversando com a mãe, decidiu fazer algo por quem estava mais exposto ao frio.
"Criei um evento no Facebook pedindo doações para comprar cobertores e marquei o dia da entrega. Nessa primeira ação, saímos em umas dez pessoas e demos 138 cobertores. E o que a gente percebeu é que as pessoas queriam conversar", lembra.
A entrega se tornou uma ação mensal. Pesquisando, Lucas não encontrou nenhum projeto que distribuisse pasta e escova de dentes para moradores de rua, e incluiu esses itens a partir da segunda saída. "As primeiras ações foram se moldando a ponto de ser essa a essência do projeto, de compartilhar sorrisos na cidade. De como somos todos iguais, deixando de considerá-los invisíveis para a sociedade, para nós, para todos", explica.
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Hoje, Lucas é uma das nove pessoas que integram a "linha de frente" do projeto, cuja página no Facebook tem mais de 3 mil seguidores. Em média, 50 pessoas vão às ruas para fazer as entregas, e centenas colaboram para comprar e doar os materiais. A ação passou a ocorrer sempre na última terça-feira de cada mês, e é coordenada pela página no Facebook.
Segundo os dados mais recentes da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo, há quase 15 mil pessoas em situação de rua na cidade, entre os que ficam em centros de acolhida e os que dormem nas ruas.
Na chegada às redondezas do Metrô Santana, onde é grande a concentração de moradores de rua, volutários do Entrega por SP encontram outras pessoas que estão ali entregando marmitas. São membros da Igreja Evangélica Vitória Só em Cristo em Jova Rural (Foto: Fábio Tito/G1)Na chegada às redondezas do Metrô Santana, onde é grande a concentração de moradores de rua, voluntários do Entrega por SP encontram outras pessoas que estão ali entregando marmitas. São membros da Igreja Evangélica Pentecostal Vitória Só em Cristo em Jova Rural (Foto: Fábio Tito/G1)
Coleção de histórias
Em quase dois anos de entrega, os participantes do projeto têm uma coleção considerável de histórias ouvidas e vividas com moradores de rua. De lutador de boxe vindo das Filipinas com promessa de sucesso e acabando nas ruas, ex-médico da Santa Casa, às reações mais inesperadas de gratidão e fraternidade vindas de quem recebe as doações.
Cachorro permaneceu ao lado do corpo do dono, um morador de rua da região central de São Paulo (Foto: Edu Silva/Futura Press)Cachorro permaneceu ao lado do corpo do dono,
um morador de rua da região central de São Paulo
(Foto: Edu Silva/Futura Press)
Na última terça-feira (28), o grupo que percorreu a Avenida Nove de Julho teve uma das experiências mais marcantes durante uma entrega. Um morador de rua morreu no local onde dormia, perto da Praça 14 Bis. "Quando a gente chegou lá já tinha acontecido, parece que ele faleceu à tarde. Os outros o conheciam como 'Seu Yah', e o cachorro era o Negão. A área estava isolada quando chegamos", conta Marcela Branco, jornalista de 26 anos que também está à frente do Entrega.
Ela havia conhecido o morador no mês anterior, quando fazia a mesma rota de entrega. "Ele ficava ali sozinho, bem na frente de uns bares ao lado da [Praça] 14 Bis. Eu o acordei dessa vez e falei com ele, das outras vezes ele não chegou a acordar. Lembro que ele agradeceu por eu tê-lo acordado, que ficou feliz com o kit. O cachorro estava do lado, e deu a impressão de cuidar mesmo do dono", lembra.
Um fotógrafo da agência Futura Press registrou o cachorro deitado ao lado do morador de rua durante a madrugada, mesmo após o corpo ser coberto e a área, isolada.
* nome fictício usado a pedido do entrevistado
Há quase dois anos, um grupo de jovens se reúne mensalmente para percorrer São Paulo para fazer a 'Entrega por SP', entregando kits com alimentos, roupas, pasta e escova de dentes etc. para moradores de rua, além de conversar com essas pessoas (Foto: Fábio Tito/G1)Voluntários do Entrega por SP conversam com moradores de rua ao lado da Av. Nove de Julho, perto do Masp (Foto: Fábio Tito/G1)
Sentada mexendo em um radinho, uma das moradoras que vivem sob um viaduto da Av. Nove de Julho conta que está ali há menos de dois meses, desde que acabou de cumprir pena em um presídio. Ao fundo, outros moradores experimentam roupas doadas (Foto: Fábio Tito/G1)Sentada mexendo em um rádio de pilha, uma das moradoras que vivem sob um viaduto da Av. Nove de Julho conta que está ali há menos de dois meses, desde que acabou de cumprir pena em um presídio. Ao fundo, outros moradores experimentam roupas doadas (Foto: Fábio Tito/G1)
Sob o Viaduto Professor Bernardino Tranchesi, atrás do Masp, moradores de rua se dividem em pontos entre as paredes de pedra inclinadas e lajes da estrutura do túnel na Av. Nove de Julho, logo abaixo (Foto: Fábio Tito/G1)Sob o Viaduto Professor Bernardino Tranchesi, atrás do Masp, moradores de rua se dividem em pontos entre as paredes de pedra inclinadas e lajes da estrutura do túnel na Av. Nove de Julho, logo abaixo (Foto: Fábio Tito/G1)
Acordado pelo grupo enquanto dormia protegendo-se do frio só com caixas de papelão, morador de rua canta música romântica em espanhol após falar desenfreadamente e receber doações, em rua na Zona Oeste de São Paulo (Foto: Fábio Tito/G1)Acordado pelo grupo enquanto dormia protegendo-se do frio com caixas de papelão, morador de rua canta 'La Barca', do cantor romântico espanhol Luis Miguel, após falar desenfreadamente e receber doações, em rua na Zona Norte de São Paulo (Foto: Fábio Tito/G1)
O catador Wellington posa ao lado de seu carrinho, que ele chama de sua 'galinha dos ovos de ouro'. Ele contou que mora em uma pensão perto do Metrô Santana e paga até uma vaga na garagem para o carrinho (Foto: Fábio Tito/G1)O catador Wellington posa ao lado de seu carrinho, que ele chama de sua 'galinha dos ovos de ouro'. Ele contou que mora em uma pensão perto do Metrô Santana e paga até uma vaga na garagem para o carrinho (Foto: Fábio Tito/G1)
Muitos dos cachorros de moradores de rua apresentam aparência bastante saudável (Foto: Fábio Tito/G1)A maioria dos cachorros de moradores de rua vistos pela reportagem durante as ações apresentam aparência bastante saudável (Foto: Fábio Tito/G1)
Homem volta para dormir ao lado de amigos na Praça Margarida de A. Gimenez após receber doações, perto do Metrô Santana, Zona Norte de São Paulo (Foto: Fábio Tito/G1)Homem volta para dormir ao lado de amigos na Praça Margarida de A. Gimenez após receber doações, perto do Metrô Santana, Zona Norte de São Paulo (Foto: Fábio Tito/G1)



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